Palestina: história e geopolítica de um nome

Palestina: história e geopolítica de um nome

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Palestina : história e
geopolítica de um nome
 
 
Luis Dolhnikoff revê a origem do termo Palestina, central em todas as discussões que dizem respeito ao Oriente Médio, e que foi adotado no âmbito de um projeto de destruição nos anos 60
 
 
N ão há tema geopolítico contemporâneo mais complexo do que o conflito do Oriente Médio. Além da complexidade, o interesse político contribui para fazer de boa parte dos textos a respeito mera propaganda travestida de análise. Se isto vale para os argumentos pró-sionistas, não vale menos para os pró-palestinos. Ao mesmo tempo, tornou-se senso comum a idéia de que o "excesso de história" não ajuda a compreensão do conflito. Creio, porém, que o excesso de propaganda sem respeito à história tampouco ajude. Retorno, então, a ela, tendo por guia a história de um nome.
 
Os povos que passaram pela região ou nela viveram são conhecidos: judeus, assírios, babilônios, persas, gregos, romanos, bizantinos, árabes, turcos, ingleses. Um "povo palestino" não faz parte da história. Mas se não faz, como pode tal conflito ser nomeado, com propriedade histórica, "conflito israelense-palestino" e variações?
 
A palavra palestino, que os árabes hoje adotam na forma de falastin, é, por ironia, originalmente hebraica, peleshet, que, numa outra ironia, significa invasor e divisor. Peleshet, em latim palastinus, era o termo usado pelos antigos israelitas para referir-se a invasores vindos do mar, de origem grega (conhecidos em português como filisteus). Depois das lutas anti-romanas do século 2, os romanos, como forma de descaracterização e de provocação, impuseram o nome Palastina ao reino de Israel. A Palastina original é, portanto, o próprio reino de Israel. O fim do Império Romano foi também o fim de suas províncias, incluindo a de Israel-Palastina.
 
O território seria então, ao longo dos séculos, dividido entre províncias bizantinas, árabes e otomanas, sem readquirir o nome ou a definição geopolítica que tivera ao tempo de Israel-Palastina (com exceção de um período de reunificação pelos cruzados no século 13). No período do Califado, por exemplo, em seguida à conquista muçulmana, no século 7, o território seria dividido em dois jund, ou distritos, o do norte e o do sul. O mapa ao lado mostra a região conforme sua realidade geopolítica no fim do Império Otomano. 1
 
O que fora o antigo reino de Israel e a Palastina romana é agora apenas uma parte de uma unidade maior, a província turca, ou vilayet, de Beirute. As províncias turcas dividiam-se em unidades menores, os sanjaks. Assim, a província de Beirute, englobando o atual Líbano e o norte de Israel e da Cisjordânia, está dividida em Sanjak de Beirute, Sanjak de Acre e Sanjak de Nablus. Ao sul, um sanjak foi separado da província: o Sanjak de Jerusalém, englobando o sul de Israel e da Cisjordânia, Gaza e o nordeste do Sinai.
 
Tanto a definição geopolítica quanto o nome da antiga Palastina romana seriam retomados, depois de quase dois mil anos, apenas em 1922. E somente pelos 25 anos que duraria a Palestina Britânica, extinta pela onu em 1947 (o mandato britânico se inicia em 1920, sobre o que são hoje Israel e Jordânia; em 1922, porém, o território do mandato seria dividido em Palestina e Transjordânia).
 
Antes de 1922 e depois de 1947, portanto, não existiu Palestina alguma. Em fins do século 19, os sionistas começaram a emigrar, assim, não para a Palestina (é absurda a afirmação de que se possam instalar em terras de um Estado inexistente), sequer para qualquer território árabe, mas para o Império Otomano.
 
O projeto sionista era o de constituir uma nação judaica numa região do multiétnico Império, região que, apesar de habitada majoritariamente por árabes, nem era exclusivamente árabe (mas também turca, curda, persa, armênia) nem se constituía num Estado árabe. E que, entre seus habitantes, sempre contara com uma significativa população judaica, por ser o antigo território de Israel-Palastina.
 
 
O território onde hoje estão o Estado de Israel e a zona autônoma palestina era dominado pelo Império Otomano e dividido em Sanjaks ou regiões administrativas submissas a um poder central
 
 
 
Quando, em 1947, uma Palestina árabe se tornou possível por determinação da ONU, os árabes a recusaram. Os árabes, não os "palestinos". Na própria resolução que estabeleceu a partilha da Palestina Britânica, os únicos nomes usados são "judeus" e "árabes"
 
 
 
Quando, em 1947, uma Palestina árabe se tornou possível por determinação da onu, os árabes a recusaram. Os árabes, não os "palestinos". Na própria resolução que estabeleceu a partilha da Palestina Britânica,
não há qualquer referência a "palestinos"; os únicos nomes usados são "judeus" e "árabes": "Os [futuros] Estados independentes judeu e árabe..." (Resolução 181, 1, 3)2. Nem poderia ser diferente, pois todos os habitantes do território, árabes, judeus e ainda armênios, turcos etc eram igualmente chamados de palestinos, conforme se constata nos documentos da época (o nome original do jornal israelense Jerusalem Post, por exemplo, era Palestine Post).
 
A importância do nome reside no fato de ele não ser árabe em qualquer aspecto: nem etimológico, nem histórico, nem geopolítico. Mas se o termo palestino não tem originalmente qualquer relação com os árabes, por que, hoje, designa a mais célebre causa nacional árabe?
 
Em meados do século 20, sob a liderança do mufti de Jerusalém, os árabes locais não reconheciam nem a definição britânica do território nem o nome Palestina, de uso colonial. Defendiam, então, o pan-arabismo, segundo o qual os árabes constituem um único povo, dividido primeiro pela fragmentação política do antigo Califado de Maomé, depois pelas províncias otomanas, em seguida pelas províncias britânicas e francesas. Seu objetivo era a criação de uma unidade geopolítica que englobaria, de início, os atuais territórios do Líbano, da Síria, da Jordânia e de Israel – daí recusarem a partilha determinada pela onu. Seria apenas com a derrota histórica do pan-arabismo, face à consolidação das ex-províncias inglesas e francesas em novos Estados-nação, que os árabes da ex-Palestina Britânica se viram pouco a pouco forçados a caminhar para uma solução individual, ou seja, um projeto nacional.
 
Uma vez criado, nos anos 60, um movimento nacionalista "palestino", surgia, enfim, o povo palestino (os refugiados palestinos não eram, nos anos 50, refugiados palestinos, mas refugiados da Palestina). O movimento adota como referência geopolítica, em vez do traçado legalmente determinado pela onu, a ex-província inglesa. O conflito se torna, assim, israelense-palestino quando os árabes da antiga Palestina Britânica, junto com a referência territorial, adotam tardiamente o antigo nome colonial.
 
O destino dos árabes da Palestina dividiu-se, grosso modo, em cinco. No caos do fim dos impérios inglês e francês, incluindo a guerra árabe-israelense de 1948, uma parte dos refugiados foi para a ex-província francesa do Líbano, onde, por esta origem colonial distinta, não seriam reconhecidos como cidadãos; uma parte foi para a Transjordânia, atual Jordânia, ex-colônia britânica, onde, portanto, foram reconhecidos como cidadãos (constituindo, hoje, a maioria da população); outra parte ficou em Israel, onde igualmente adquiriu cidadania; outra parte dispersou-se pelo mundo; outra parte, enfim, permaneceu nos territórios da antiga Palestina Britânica destinados pela onu para constituir um "Estado árabe", ou seja, Gaza e Cisjordânia. Entre 1948 e 1967 não havia, em tais territórios, nenhum soldado israelense. Eles estavam, então, sob domínio árabe, respectivamente do Egito e da Jordânia. Não obstante, os árabes de Gaza e da Cisjordânia não exigiram do Egito nem da Jordânia que lhes entregassem tais territórios para constituírem ali seu Estado. Seu objetivo político era, não construir um Estado nesses territórios – daí jamais o terem construído entre 1948 e 1967 –, mas destruir o Estado de Israel, visando reconstituir a antiga Palestina Britânica na forma de uma Palestina Árabe.
 
 
 
Em meados do século 20, sob a liderança do mufti de Jerusalém, os árabes locais não reconheciam nem a definição britânica do território nem o nome Palestina, de uso colonial. Defendiam, então, o pan-arabismo, segundo o qual os árabes constituem um único povo
 
 
 
Assim, em 1964, sob os auspícios de Nasser, foi criada no Cairo a Organização para a Libertação da Palestina, ou olp. Não para a libertação dos territórios de Gaza e da Cisjordânia da ocupação israelense, pelo simples motivo de que tais territórios não estavam sob ocupação israelense em 1964. Mas para a "libertação" do restante da ex-Palestina Britânica de Israel. O verdadeiro nome da organização, portanto, deveria ser Organização para a Destruição de Israel, ou odi.
 
Ironicamente, seria o Estado de Israel que daria legitimidade à olp e ao próprio movimento palestino, originalmente ilegítimo, ao demandar, não a construção de um Estado, mas a destruição de outro. Pois ao ocupar, em 1967, Gaza e a Cisjordânia, Israel forçou a substituição do objetivo original de destruí-lo pelo de libertar a Cisjordânia e Gaza. Havia, enfim, uma causa palestina legítima. O objetivo original do movimento
palestino, porém, jamais foi esquecido. Não só porque foi seu único objetivo político por 20 anos (entre 1948 e 1967), ou seja, por toda uma geração, mas também porque o novo objetivo não foi escolhido pelos palestinos, e sim imposto por Israel.
 
É por isso que, na verdade, jamais houve uma causa palestina, mas duas: construir o Estado palestino e destruir o Estado de Israel. O que pressupõe o massacre da população israelense, e nesse quadro ideológico se explica a opção por atentados contra civis, em vez de soldados. Explica-se grandemente, também, o próprio fracasso histórico da "causa" palestina.
 
Não é por acaso que a "causa" palestina seja a única, de todas as grandes causas nacionais da segunda metade do século 20 (excluindo somente a curda), a ter fracassado. Argelinos, sul-africanos e africanos em geral, indianos e timorenses, chineses e vietnamitas, todos venceram. O caso vietnamita é exemplar: lutaram contra as mais poderosas forças armadas da história. Não é, portanto, nenhum poderio militar israelense que explica a derrota histórica palestina. Os vietnamitas, na verdade, jamais venceram as forças armadas americanas. Os eua foram derrotados por sua própria opinião pública, que passou a considerar injusta a intervenção militar no país asiático, forçando uma retirada. Se isso jamais aconteceu em Israel, não é porque a população israelense seja pérfida, como acreditam os anti-israelenses e os anti-semitas. Nem porque os grupos políticos que querem manter a ocupação sejam irresistíveis, como não foram irresistíveis os grupos que queriam continuar a guerra do Vietnã. O motivo é que, ao contrário da causa vietnamita, que não incluía a destruição dos eua, a "causa" palestina, desde 1967, sempre hesitou entre um objetivo legítimo e um ilegítimo (o que não ajuda a concentração e a objetividade das forças políticas nem a solidariedade internacional). A recente eleição do Hamas não foi um acidente histórico.
 
O projeto sionista não tinha um mapa definido (mas vários). Esse mapa emergiu em 1922, e foi traçado, não pelos sionistas, mas pelo Império Britânico: a Palestina Britânica. Assim, quando em 1947 a onu a dividiu, destinando uma parte a Israel e outra a um Estado árabe, dividiu igualmente o movimento sionista. A parte dominante do movimento, liderada por Ben Gurion, foi a que se resignou à partilha, fundando o Estado de Israel (a outra parte, naturalmente, era a dos que sonhavam em anexar Gaza e a Cisjordânia, e ganharia um novo impulso com as ocupações de 1967). No lado árabe, ao contrário, a parte amplamente dominante de seu espectro político, liderada pelo mufti de Jerusalém, foi a que recusou a partilha, criando o objetivo geopolítico de destruir o Estado de Israel.
 
Além da ironia de Israel ter dado afinal legitimidade à olp e ao próprio movimento palestino, outra grande ironia da situação é o fato de que a causa palestina original, reconstituir a antiga Palestina Britânica, de certa forma legitimaria aqueles grupos políticos israelenses que, desde a aceitação da partilha por Ben Gurion, sempre quiseram a mesmíssima coisa. A diferença é o meio: os palestinos, para consegui-lo, devem destruir Israel, enquanto esses grupos israelenses apenas precisam impedir que se construa o Estado palestino. Para isso, contam com o apoio involuntário dos próprios grupos palestinos que querem destruir Israel e, deste modo, atrapalham as forças políticas palestinas que afinal escolheram construir um Estado palestino, além de impedir que a população israelense apóie maciçamente sua construção.
 
Os palestinos, que hoje se reconhecem como um povo, devem constituir seu Estado independente, não porque isto seja a tradução geopolítica de alguma justiça cósmica, mas tão-somente porque o querem. Querer que, por sua vez, não é obrigatório (entre 1948 e 1967 não quiseram a independência de Gaza do Egito e da Cisjordânia da Jordânia). Os franceses do Quebec têm o direito constitucional de se separar, mas não o exercem.
 
Os porto-riquenhos estão divididos ao dos eua. Apenas uma pequena minoria dos bascos deseja a independência. Os kosovares querem separar-se da Sérvia, não para ser independentes, mas para se fundirem à Albânia. Os palestinos devem, enfim, construir um Estado independente, sendo este o desejo da maioria. Este deve, portanto, ser o sólido e inquestionável desejo da maioria, negando e renegando o desejo alternativo de destruir Israel. Seu mais forte aliado, então, será a maioria da população israelense.
 
Luis Dolhnikoff é escritor e ensaísta
 
 
 
 
 

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